Mais Sobre o Livro

Numa religião ligada à ancestralidade, a memória é o cerne desse conhecimento. Não só pela necessidade de reter uma quantidade enorme de informações sobre a cosmogonia, suas manifestações, procedimentos e inúmeros repertórios, mas porque esse conhecimento está a serviço do culto de ancestrais divinizados, que atravessam milênios e oceanos para se comunicarem com seus descendentes.

As culturas orais filtram qualitativamente através do tempo seus saberes e fazeres, esculpidos pela memória de seus guardiões. Este aprendizado traz um outro comprometimento com a memória e desenvolve mecanismos eficientes que guardam arquivos inteiros e os correlacionam, ao invés dos “links” que aprendemos a reter na alfabetização. As diversas entidades, que tomam o corpo dos iniciados em transe, também marcam em sua memória corporal um vasto repertório artístico que se revela e se recria nas brincadeiras profanas, fornecendo ferramentas outras para a criação e o improviso.

CAPA_LIVRO_site

Pedra da Memória nasceu a partir de mais de dez anos de convivência assídua com a casa Fanti Ashanti, sua comunidade, sua cultura, cultivando laços profundos de amizade e colaboração que já resultaram em diversos registros em CD e documentários da Casa. Em 2009 e 2010, recebi por duas vezes o Prêmio Interações Estéticas da FUNARTE, que me permitiram, na longa residência artística em São Luís, um mergulho mais concentrado em seu cotidiano e na complexa trama de seu universo mítico e temporal.

A Casa Fanti Ashanti, fundada em 1958 pelo babalorixá Euclides Talabyan Lissanon, é hoje um dos centros afro religiosos mais importantes em atividade no Maranhão, referência da cultura jeje nagô no Brasil e tema de inúmeras teses e artigos de pesquisadores de todo o país. Reconhecido como Ponto de Cultura em 2006, o intenso calendário de atividades da Casa inclui tradições sagradas e profanas como o Tambor de Mina, Candomblé, Pajelança, Baião de Princesas, Samba Angola, Mocambo, Tambor de Crioula, Tambor de Taboca, Canjerê, Bancada, Bumba meu Boi, Festa do Divino e outras.

Pai Euclides é um sacerdote internacionalmente conhecido e apesar de seu prestígio, de sua voz e de sua imagem já terem atravessado o oceano, nunca havia tido a oportunidade de fazê-lo. Aos 73 anos, 67 deles dedicados ao culto afro-religioso, viajou pela primeira vez à África indo ao encontro da cultura de seus ancestrais, com a qual dialoga cotidianamente.

Pedra da Memória teve como proposta uma investigação estética entre os gêneros tradicionais cultivados no Brasil e no Benin (África Ocidental), revelando seus vínculos e particularidades. O projeto promoveu um diálogo entre a cultura dos dois países, ao levar a comunidades de culto vodun no Benin uma comitiva da Casa Fanti Ashanti. Ao longo de 5 semanas, eu, o antropólogo beninense radicado no Brasil Brice Sogbossi, o Babalorixá Euclides Talabyan, a Iyakekerê Isabel Onsemawyi e o Ogan Carlos da comunidade maranhense, visitamos as cidades de Cotonou, Abomey, Ketou, Porto Novo, Ouidah, Allada, Pobe e Sakete, realizando encontros e registros audiovisuais de diversas tradições como as cerimônias vodun, Zangbeto, Egungun, Geledés, fanfarres e as tradições dos Agudás, os afro brasileiros do Benin, descendentes de trabalhadores do tráfico escravagista e ex escravos que retornaram ao Benin quando a escravidão foi abolida.

Além do grande material registrado na viagem – cerca de 60 horas de vídeo, 20 de áudio multipistas e dez mil fotos – e de meu acervo pessoal de quinze anos de pesquisas em diversos estados brasileiros, foram feitos ainda novos registros no Maranhão e em Pernambuco ao longo da residência artística.
Essa experiência transformadora resultou neste livro, na mostra fotográfica e no documentário Pedra da Memória, que trazem uma aproximação poética e reveladora sobre as tradições populares brasileiras e beninenses.

Os registros sobre as contribuições dos grupos iorubas e bantos são abundantes, no entanto, apesar de ter sido o Dahomé um dos principais portos de origem do enorme contingente de escravos trazidos ao Brasil, são menos numerosos os estudos sobre a cultura jeje, e especialmente sobre o enorme patrimônio cultural afro-brasileiro existente no Benin.

Entre os quase um milhão de escravos saídos do porto de Ouidah entre os séculos XVII a XIX, estava a rainha Nã Agotimé, vendida como escrava quando seu enteado Adandoza assumiu o trono do reino do Dahomé, após a morte do rei Agongolo. Agotimé chegou a São Luís e fundou, na década de 1840, a Casa das Minas Jeje, que junto à Casa de Nagô, deram origem aos mais de três mil terreiros de Tambor de Mina existentes hoje no Maranhão. Também relaciona as duas culturas o fato que na região de Cururupu funcionou um dos últimos portos clandestinos de chegada de escravos no Brasil, que mesmo após a proibição do tráfico escravagista continuou funcionando ali até o início do século XX, fato inclusive relatado em histórias ouvidas por Euclides de suas matriarcas do Terreiro do Egito, onde foi iniciado.

Esse contraponto, na outra margem, se evidencia na cultura dos Agudás, que hoje representam 10% da população do Benin. A influência brasileira lá é surpreendente e pouco conhecida. Na época da abolição da escravatura, muitos escravos libertos, em geral pequenos comerciantes e artesãos, voltaram do Brasil para o Benin, formando uma elite local que dominou o comércio e a construção civil do Dahomé (atual Benin) por toda a primeira metade do século XX.
O Brasil está presente na arquitetura, culinária, língua e diversos outros aspectos culturais do pais africano. Cultivando há mais de um século, com impressionante dedicação, as tradições de seus antepassados como o Carnaval, a Festa do Senhor do Bonfim e a Burrinha (aparentada ao bumba boi), os Agudás se consideram brasileiros, e invertem desconcertantemente nossa noção de ancestralidade.

Pedra da Memória quer fazer o caminho inverso da Árvore do Esquecimento, e fomentar os re-conhecimentos.

Pedra da Memória

A natureza da pedra é estável. As suas partes aderem entre si, então a matéria da pedra resiste bem às forças que pretendem desagregá-la. O caráter da pedra determina o seu destino. Mas a resistência da pedra é maior quando a sua concretude, sem deixar de ser compacta, sabe se tornar porosa. Arejada, permeável, propensa a ser maleada. Água mole não fura a carnadura dessa pedra: a água passa e a pedra fica no lugar, perfumada pelo sal, adensada pelo que reteve da água. É quando a pedra destila leite. E sangue. Amorosamente enlaçadas, as duas cores formam um terceiro tom, a que chamamos memória.

Walter Garcia

Voltar